Lira Paulistana e Vanguarda Paulista: conhece esses termos? Hoje, você descobrirá tudo sobre esse movimento pra lá de experimental, que é um dos mais inusitados de São Paulo. Mas, antes disso, vale lembrar que ser artista não é fácil e nem simples. É necessário ter muita paixão, coragem e dedicação para conseguir sobreviver no meio. 

Óbvio que existem pessoas mais privilegiadas, que têm condições financeiras de passar anos sem salário para se dedicar à carreira artística. Entretanto, para a maior parte da população, essa é uma vida profissional extremamente difícil.

E algo que me deixa animada é ver a quantidade de artistas independentes que temos hoje, pessoas que arregaçam a manga e tentam fazer o próprio rolê! Inclusive é graças ao meio independente que temos uma cultura tão forte e rica dentro do Funk, Hardcore, Metal, Punk, Hip Hop, Rap e Indie. Pensa em quantos artistas brasileiros começaram postando o próprio material na internet… 😉

Só que você já parou pra pensar quando essa cultura do “artista independente” tomou forma aqui no Brasil? Bom, isso aconteceu durante o movimento chamado Vanguarda Paulista e é justamente sobre isso que falaremos neste artigo. 

Mas o que é a Vanguarda Paulista (às vezes chamada de Vanguarda Paulistana)? 

Bom, vou começar pela terminologia: segundo Luiz Tatit, foi um termo criado por jornalistas, mais especificamente Maurício Kubrusly, que trabalhava no Jornal da Tarde. Ao escrever uma chamada sobre músicos de vanguarda de São Paulo, que se apresentavam em um porão chamado Teatro Lira Paulistana, ele acabou cunhando o termo, bem simples, né? 

Basicamente, os músicos queriam quebrar com aquela forma quadradinha de produzir música tão dominante na MPB dos anos 70. Com “quadradinha” quero dizer seguindo a escala tonal comum (que é muito usada na música popular internacional). Isto é, eles queriam fazer algo mais ousado, experimental (e com uma influência de Jazz) que representasse a linguagem jovem da época.

É importante ressaltar que a Vanguarda Paulista não era um grupo que seguia um padrão, mas um grupo de pessoas tentando romper com os padrões, cada um do seu jeito. E eles sempre se apresentavam no Teatro Lira Paulistana, na Praça Benedito Calixto, que fica na Zona Oeste de São Paulo.

Um ponto importante é que esse lugar onde eles se apresentavam era pequeno, escondido e com poucos recursos. Lá, cabiam apenas 300 pessoas, o que fez com que o contato entre público e artista fosse bem grande e importante para o movimento. E isso fez com que os profissionais se sentissem mais expostos ao público já que o feedback era imediato.

Em outras palavras, o Lira acabou sendo esse grande berço para toda música alternativa. E ele chegou a ficar tão importante que os shows deixaram de ser no porão e passaram a ser na própria Praça Benedito Calixto. Por falar nisso, sabe quem trabalhava por lá? O Clemente do Restos de Nada, um dos pais da música Punk brasileira. 

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Itamar Assumpção e a banda Isca de Polícia

Com certeza, o grupo mais importante nesse primeiro momento foi a banda fictícia Isca de Polícia. Por que fictícia? Porque a banda começou com um disco lançado por Itamar Assumpção, que fez todos os arranjos sozinho. Na gravação, ele tocou quase todos os instrumentos, com exceções de artistas convidados. 

Beleléu Leléu Eu | Itamar Assumpção & Isca de Polícia

Mas, para poder tocar em shows, ele precisava de uma banda, então convidou algumas pessoas. Aliás, já imaginou ser convidado para uma banda nova que já tá com tudo pronto? Que sonho!

O nome da banda nasceu depois que Itamar pegou um gravador emprestado com um amigo. Ao passar pela polícia, ele foi parado porque acharam “estranho” um homem negro com um gravador caro. E ele ficou preso por uma semana até conseguir provar que era inocente. Depois, junto com o amigo que tinha emprestado o material, apelidaram o gravador de “Isca de Polícia” e ele resolveu usar o nome na banda.

O mais engraçado é que o próprio Itamar não gostava do termo “Vanguarda Paulista”, sabia? Por sinal, ele ficava muito bravo quando falavam que sua música era experimental. 

Em seu primeiro álbum, Beleléu Leléu Eu, Itamar cria um personagem chamado Nêgo Dito, que ele interpretava durante as apresentações. Ele conta sua história através de várias músicas, parecendo até um enredo de filme. Esse álbum foi gravado na casa de Wilson Souto Jr (dono do Lira Paulistana), de forma totalmente independente.

Nêgo Dito | Itamar Assumpção

Só lembrando que, como eram artistas independentes, em uma época antes da popularização da internet, as músicas de Itamar (mesmo sendo consideradas geniais) nunca chegaram a conquistar o resto do Brasil.

Arrigo Barnabé e a banda Suor de Veneno

Bom, se não foi o Itamar Assumpção que fez mais sucesso, quem foi o artista tido como a estrela da Vanguarda Paulista? Vamos com Arrigo Barnabé.

Infortúnio | Arrigo Barnabé

Preste atenção em Diversões Eletrônicas, a segunda música da apresentação. Nela, Arrigo Barnabé dá o berro “DIVERSÕES ELETRÔNICAS”, um choque na época no Brasil, lembrando que estávamos em 1979.

Na época, tava rolando muita coisa experimental e agressiva na gringa, como The Clash e Ramones. Só lembrando, mais uma vez, que era uma época com pouco acesso à internet e o Brasil passava pela Ditadura Militar. Então, não é difícil imaginar porque não tínhamos acesso ao que estava acontecendo de mais novidade lá fora. 😉

Continuando, Arrigo era amigo e muito fã de Itamar Assumpção, tendo um estilo bem similar. Chegou a ficar em primeiro lugar no Festival da TV Cultura com Diversões Eletrônicas (composta por ele e Regina Porto). E, em segundo lugar, ficou Brigando Na Lua, de Mario Augusto Aydar (que rolava até um teatrinho de uma briga na lua).

Brigando Na Lua | Mario Augusto Aydar

Essa premiação impressionou bastante, pois o novo foi valorizado. Ou seja, rolou uma ousadia da parte dos jurados.

Arrigo, agora conhecido no Brasil, dá o nome de Suor de Veneno para sua banda e lança o álbum Clara Crocodilo em 1980. Depois do disco não decolar no Brasil, ele foi para Europa se apresentar em festivais de Jazz, onde foi aclamado pela crítica. Hoje em dia, esse álbum é considerado um clássico.

Clara Crocodilo | Arrigo Barnabé

Apesar do sucesso, as músicas não tocavam na mídia mainstream por serem muito diferentes. Isto é, não estavam na rádio ou na televisão. Apenas circulavam entre quem frequentava ambientes mais artísticos. No fim das contas, eles estavam famosos no boca a boca, por meio das lojas de discos, mas não tocavam em lugar nenhum fora do sudeste.

Para ajudar, os artistas se recusavam a assinar com gravadoras grandes, pois não queriam entrar no mercado da música de forma tradicional. A ideia era criar música de forma nova, livre e independente, ignorando o pensamento de mercado, aquela lógica mais capitalista. 

O lance deles era vender o merch nos shows e deixar em consignado nas lojas. No caso, isso é deixar o álbum exposto na loja sem que o comerciante pague antes; ele só paga o que vender. Uma espécie de “pós-pago” nas lojas de discos.

Grupo Rumo

Além de Arrigo Barnabé, uma das bandas mais legais foi a Rumo.

O que é que você fazia? | Grupo Rumo

Eles faziam melodias de uma forma diferente, criavam a sonoridade através da entoação das palavras de forma explícita. Normalmente, os cantores brasileiros tentam esconder as entoações; uma técnica que é muito comum no Hip Hop americano, em que você altera a forma como se pronuncia certas sílabas para fazer rimar. E, se você manja de inglês, é só comparar a técnica dessa música deles que coloquei aqui em cima com essa do MF Doom.

Enfim, fica com essa sensação de música mais “falada”. Eu fico muito brava com quem fala “acho um absurdo quem diz que fazer música em português é difícil, é só ouvir a Elis Regina”. Porra, é difícil para um caralho, quem fala isso tá desvalorizando o trabalho de muitos compositores brasileiros incríveis. Por isso fico tão impressionada quando escuto Rumo, a fluidez da melodia vocal deles é um absurdo.

Então, meio sem querer, deixar a entoação explícita acabou sendo uma das marcas da Vanguarda Paulista, já que outros artistas faziam também. O mais interessante é que eles tinham essa necessidade de colocar partes faladas na música pois gostavam muito de colocar piadas não explícitas que muitas vezes criticavam o governo ditatorial. Transformar a crítica em humor meio que enganava a censura.

Vale lembrar que os artistas da Vanguarda Paulista tinham uma certa rivalidade com o pessoal do Rio de Janeiro, que não gostavam tanto do som experimental dos paulistas que questionavam a dominância carioca na cultura brasileira.

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Descubra mais 8 músicas da Vanguarda Paulista 

O movimento da Vanguarda Paulista teve seu auge em 1985. Eu sei que o rolê deles ficou tão profissional que a gravadora da Lira Paulistana passou a fazer lançamentos em conjunto com a Gravadora Continental, que era bem maior. Por fim, o selo acabou sendo encerrado em 1986, marcando o final do auge da Vanguarda Paulista.

E, se você gosta de músicas com letras engraçadas (cheias de referências humorísticas), cacofonia, álbuns com historinhas absurdas e emocionantes, criatividade e um som experimental, escute mais essas músicas, além das que já citamos anteriormente:

1. São Paulo, São Paulo | Premeditando o Breque (Premê)

2. Escrito nas Estrelas | Tetê Espíndola

3. Canto em Qualquer Canto | Ná Ozzetti

4. Concheta | Língua de Trapo

5. Chora Viola, Canta Coração | Grupo Paranga 

6. Xote Bandeiroso | Língua de Trapo

7. Vampiro S.A. | Língua De Trapo

8. Monsieur Duchamp | Aguilar e Banda Performática

Não sei vocês, mas eu estou com Kid Vinil e considero a Vanguarda Paulista um movimento (sim, movimento), muito importante. Já que é graças a eles que a cultura da arte independente (e arte irreverente) começou cedo aqui no Brasil. 

Sem eles, não existiriam bandas fundamentais para nossa cultura, muito menos os importantíssimos movimentos artísticos dos anos 90. Justamente por isso, valorizamos os artistas independentes aqui no blog Artcetera!

Bônus: playlist com as músicas experimentais da Vanguarda Paulista

Por último, mas não menos importante, criamos uma playlist para quem quer conhecer mais da Vanguarda Paulista. Agora, é só dar o play em [Vanguarda Paulista] #69 Artcetera para curtir as músicas experimentais de Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé, Premê e mais.

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