Alô, alô!

Tivemos o prazer de conversar com o Lusa Silvestre, um dos maiores roteiristas do Brasil na atualidade! O entrevistado de hoje já nos fez rir e chorar com seus filmes e tenho certeza que vocês vão amar conhecê-lo melhor. Além de ser muito talentoso, o Lusa foi um mar de simpatia. Às vezes até esquecia que estava em uma entrevista, de tão agradável que é conversar com ele. 

Alguns dos seus trabalhos são: “Estômago” (2007), “E aí…Comeu?” (2012), “Um Namorado Para Minha Mulher” (2014), “O Roubo da Taça” (2015), “O Silêncio da Chuva” (2019), “Amigas de Sorte” (2019) e “Medida Provisória” (2020).

Ele contou um pouco sobre seus anos de carreira, como foi a passagem da propaganda para o cinema, projetos atuais, processos de criação, referências pessoais e sobre a importância do fomento à cultura. 

Essa entrevista foi feita online no dia 19 de julho de 2022, conduzida por essa que vos escreve (Ornella) e pelo Artur.

Segue o papo:

Artur: Fala, Lusa! Tudo certo com você?

Ornella: Seja bem vindo ao nosso espaço online, Lusa! Prazer em conhecê-lo.

Lusa: E aí, Artur! Tudo tranquilo e por aí? Poxa, obrigado vocês em quererem conversar. 

Ornella: Posso começar com uma curiosidade meio boba? Seu nome é Lusa mesmo? hahaha

Lusa: Não, meu nome é Luis Fernando! Mas esse apelido vem da época da escola, desde o ginásio, que hoje é ensino fundamental. Aí quando eu comecei a trabalhar com propaganda, acabei trabalhando com uma amiga da escola, ela me chamava de Lusa e ficou assim no ambiente de trabalho também. Eu também nunca fiz questão de que não me chamassem pelo apelido, não fiz questão disso.

Ornella: É que eu acho um nome muito legal, soa bem.

Lusa: Ajudou que eu também tenho ascendência portuguesa.

Ornella: Isso que eu imaginei, lembra “Luso”.

Lusa: Sim, tem a ver. Meu avô era português, minha mãe era portuguesa e eu acabei me tornando também.

Ornella: E você é da Publicidade, né? Veio da publicidade e acabou no cinema, é uma mudança interessante. É uma linguagem próxima, mas bem diferente. Conta um pouco de como foi essa sua jornada até chegar no cinema.

Lusa: O que aconteceu foi o seguinte, eu fui pra propaganda porque gostava de escrever, tinha muita facilidade com isso. Achei que assim eu poderia unir o agradável ao útil, ou seja, fazendo aquilo que eu sabia fazer bem, que era fácil pra mim e ao mesmo tempo dava pra ganhar dinheiro na propaganda.

Durante um tempo foi legal, foi divertido, ganhei dinheiro. Mas rapidamente eu virei um executivo de criação ao invés de ser um criador mesmo. Eu falo inglês, sou cara de pau, sou bom de reunião, então – sem organizar ou planejar – acabei virando um executivo de criação. 

Eu fazia workshops, viajava pra fora, respondia e-mail em inglês, morei fora pela agência, no caso morei em Los Angeles. Depois de um tempo eu me toquei que, por um lado, eu estava conhecendo metade do mundo e ganhava uma grana que me permitia luxos. 

Por outro lado, eu estava muito longe do que me dava prazer e é chato quando você tá um pouco escravizado. Você ganha dinheiro, mas não consegue alimentar aquilo que faz você ser você. 

Daí eu fui escrever em revistas, no caso escrevi pra VIP, Playboy, Superinteressante, Época, Marie Claire, Criativa, Viagem & Turismo, enfim, escrevi durante muito tempo para revista. Depois escrevi pelo Estadão como cronista, eu gostava de fazer aquilo.

Mais uma vez, de um lado, ganhava dinheiro e viajava, do outro lado, eu escrevia e estava bom assim. Então, para escrever um livro de contos e esse livro virar um roteiro de cinema foi natural. Foi a partir disso que eu virei roteirista de cinema.

Foi com o “Estômago”, depois o “E aí…Comeu?”, aí “Muita Calma Nessa Hora”, “Depois de Tudo”, “O Roubo da Taça”, “Um Namorado pra Minha Mulher” e…puts, acho que não vou lembrar de todos. Mas assim, teve uma trajetória, mesmo que não tenha sido algo pensado.

Na propaganda, você precisa pensar em uma estrutura de 30 minutos, em contar coisas com a imagem, tem um textinho mais solto, de aproximar da linguagem que as pessoas estão falando na rua, ser sedutor, ser criativo… você está de certa maneira trabalhando com cinematografia. Então, foi um passo relativamente tranquilo que eu pude dar. 

Também teve um desencanto com a propaganda, porque depois de um tempo não estava nem um pouco perto do que eu gostava mais. Eu não acho legal ficar criando post e nem a galera iria continuar me pagando uma pra ficar criando post. 

Então, naturalmente eu migrei. Entre 2003 que foi quando fui chamado pra fazer o “Estômago”, e até 2017, que foi quando eu saí definitivamente da propaganda, foram 14 anos. Nesse período eu escrevi 8 longas, ao mesmo tempo que trabalhava fazendo propaganda. Como diretor de criação, depois como vice-presidente de criação, depois como redator da agência do Washington Olivetto. 

Durante o dia eu precisava achar horários para me afastar da propaganda e mergulhar no cinema. Esses horários eram basicamente na hora do almoço, durante 14 anos da minha vida eu almocei na mesa, escrevendo roteiro de cinema.

Ornella: Isso é bem impressionante, você conciliou as duas coisas muito bem. É legal ouvir sua trajetória, porque não foi uma coisa abrupta e isso me parece mais perto da realidade. Não tem como abandonar o trabalho e dizer “vou virar roteirista de cinema, tchau”. Tem que ter algo que nos sustente financeiramente. Por mais que “Estômago” tenha sido um filme que fez bastante sucesso, foi seu primeiro filme e demora um tempo até criar uma rede, os trabalhos vão surgindo, não é do nada. 

Lusa: Quando “Estômago” surgiu, a indústria do cinema não era tão muscularizada quanto é agora, sabe? Não tinha tanta demanda, nem tinham tantos profissionais. Eu dei uma baita sorte, porque o primeiro foi o “Estômago”, então eu já cheguei chegando.

Era um filme diferente, ganhou um monte de prêmios, assim como outros como “A Grande Arte”, “Central do Brasil”, “O Quatrilho”, “Cidade de Deus” e “Cinemas, Aspirinas e Urubus”.

Ornella: Uma época que as pessoas começaram a olhar pro cinema brasileiro, para o que era produzido aqui, de uma maneira boa, visto com “bons olhos”.

Lusa: É, a gente não teve cinema. Nós tivemos um cinema que sobrevivia a duras penas na década de 80 e que produzia filmes legais. “Besame Mucho” é um filme dessa década que é muito bom. Jabour fez filmes ótimos também, como “Eu Sei Que Vou Te Amar”, enfim, vários filmes relevantes. Do Jabour e de outros, como Walter Salles. 

Nos anos 90, a partir do Collor, o cinema brasileiro sumiu, ele encascou a Embrafilme e a gente se fod*u. “A gente” não, porque eu não estava nessa época, mas houve uma grande resistência por parte dos artistas. 

Aí veio “A Grande Arte” no final dos anos 90, “O Quatrilho” também nessa época, “Central do Brasil”, enfim, o cinema mostrando que dá pra fazer acontecer. E o brasileiro sempre foi criativo.

Artur: “O Homem Nu” também, não foi?

Lusa: Sim, “O Homem Nu” é de antes até. Então, são filmes que quando surgiram deram ao brasileiro essa possibilidade de que poderíamos fazer filme e não existe um porquê não poderíamos. Nós somos criativos, temos as ferramentas aqui. 

Por exemplo, a propaganda brasileira é conhecida como uma das melhores do mundo, então nós tínhamos os técnicos, pessoas que sabem fazer. Sempre tivemos diretores bons, fotógrafos bons, trilheiros bons, atores bons. 

Casar isso com um texto de qualidade, tendo os escritores que a gente sempre teve, por exemplo, “Deus é Brasileiro” que é do João Ubaldo Ribeiro como escritor, simplesmente aconteceu. Era algo que iria acontecer, não é algo que poderia ser contido.

Quando começamos a estourar com o “Estômago”, em 2007, que começamos a ganhar festival, começaram a vir um pouco mais de convites. Mas dava pra conciliar, era um filme aqui, outro ali. Eu sempre fui muito disciplinado, então almoçava todo dia na minha mesa, todos os dias! Nós acabávamos o trabalho na agência 19h, 19h30 eu ia pra reunião ainda. 

Eu trabalhei em agências onde isso era muito incentivado, essa vontade de ter cores diferentes na criação, pessoas plurais criando para não ficar tudo muito igualzinho, usando as mesmas referências, uma coisa viciada. O Washington Olivetto, durante os anos que trabalhei com ele, ele sempre gostou disso, sempre teve orgulho que na criação dele tinha gente de tudo quanto era jeito.

Enquanto eu trabalhava com ele, o diretor de arte, que trabalhava na minha frente, era formado em publicidade e pós graduado em cinema. Do meu lado, o meu chefe Guime, antes de trabalhar na propaganda, ele trabalhava em confecção. 

Do outro lado tinha o Valverde que tinha publicado um livro sobre o Dorival Caymmi. Um dos meus chefes tinha seis livros escritos. O Duda, meu outro chefe, é formado em gastronomia. Então era efervescente e plural, eu dei sorte de trabalhar em lugares que as pessoas valorizavam isso.

A partir do “E aí…Comeu?”, além dos prêmios, eu comecei a fazer público – o filme teve 3 milhões de espectadores -, então comecei a receber convites a ponto de estar perdendo dinheiro trabalhando em propaganda. Eu tinha que recusar muita coisa e dava pra ter um salário até melhor, embora haja essa variação dentro da produção artística, dava pra pagar as contas.

A partir de 2017, quando a propaganda deixou de ser interessante…tem uma imagem muito boa pra isso, acho que foi Cortés, que quando chegou na América, mandou queimar as caravelas, assim ninguém poderia voltar. Os caras iam ter que se resolver ali, tinham que fazer dar certo. Aí em 2017 eu queimei as minhas caravelas e a partir disso fui totalmente pro cinema.

Artur: Eu tenho zero experiência com roteiro, aí queria saber como é ser um roteirista. Dúvidas básicas mesmo, por exemplo, quanto tempo demora pra fazer um roteiro? Tipo o do “Estômago”, que é uma narrativa que começa no final e tem uma história em paralelo com resolução.

Lusa: Você não escreve o roteiro em uma sentada só, tem um processo de desenvolvimento que ajuda. Todos os filmes tem uma primeira versão do roteiro e aí, com o tempo, com outras leituras e com as outras pessoas que estão no processo, você vai maturando o roteiro.

Vai ouvindo ideias, vai tendo outras ideias, desgostando de coisas que estão ali, corrigindo. Então, a cada vez que mexe no roteiro, vai colocando um tijolinho nele. O roteiro de “Estômago” foi assim também.

No caso do “Estômago”, eu tinha um conto chamado “Presos pelo Estômago”, que é a história de um cara que tinha sido preso e dentro da cozinha ele acabava ganhando poder, porque ele cozinhava melhor que todo mundo. O conto era só isso.

Aí eu orcei um filme com um diretor chamado Marcos Jorge. Ele tinha acabado de voltar da Itália, fez um trabalho onde foi assistente do Bertolucci, então tinha um trabalho de composição de ator muito bom. 

O Marcos Jorge orçou um filme da American Airlines pra mim e ele não pegou. Eu era diretor de criação da American Airlines nessa época e ele não pegou o filme. Mas ele me convidou pra ir assistir um curta dele no CineSESC, que fica ali na Augusta, um cinema muito charmoso, aliás. 

Enfim, ele me chamou e eu não pude ir, mas falei pra ele “nossa, não sabia que você estava no cinemão”. Ele respondeu que sim e eu enviei esse conto “Presos pelo Estômago” pra ele, não tinha nem sido publicado ainda. Ele gostou e sumiu, queríamos fazer um curta, pensei “poxa, que pena”, mas não aconteceu.

Depois de uns dois meses eu cruzei com ele nos corredores da agência e ele disse “Nós vamos fazer um longa e eu sei como”. Daí ele surgiu com essa ideia da narrativa paralela, onde a gente conta a história do cara na cadeia e também conta o que ele fez pra ir em cana.

A partir do momento que tivemos essa ideia de narrativa, não foi difícil. Dá trabalho, tem que fazer várias vezes, mas não é algo inalcançável. Essa coisa “eu sou um gênio” não existe, eu trabalho pra dedéu, talvez seja esse o jeito só. Trabalho muito e nessa vida eu pratiquei bastante por causa da propaganda.

Quando você escreve para uma campanha, você escreve 6 roteiros, apresenta os 6 e aprova 1 ou nenhum, aí tem que criar mais 6. Ou seja, quando em um job você escreve 12 roteiros, você vai pegando os macetes, a vida te força a isso.

O processo em si leva tempo, não vou mentir. O roteiro que eu fiz mais rápido, eu peguei ele no quinto tratamento, então já tinha um trabalho anterior. O Marcelo Rubens Paiva já tinha feito cinco tratamentos, era uma peça dele que ele adaptou e escreveu cinco versões desse texto.

A minha versão era a sexta, eu peguei em fevereiro e o filme foi rodado em novembro, mas já tinha um trabalho anterior ao meu. O “Medida Provisória”, eu peguei pra fazer em 2016 e nós rodamos o filme em 2019, então foram três anos de trabalho e já tinha sete anos anteriores com os outros roteiristas.

Então, leva um tempo. Se for pra fazer assim e levar um ano e meio, se me pagarem todo mês uma grana, eu faço também, mas o processo tem que ser respeitado. A gente precisa ter essa capacidade de errar para depois corrigir. O processo criativo, para você criar algo sempre novo, é na base da tentativa e erro. Não existe outro jeito.

Isso eu tô dizendo com experiência de trinta e poucos anos de trabalho. Quando vai criar algo novo, você experimenta por um caminho e, se esse caminho não der em nada, você tem que ter a possibilidade de voltar atrás e começar novamente.

É só desse jeito que se cria, não estamos fazendo quatro mil chips diários iguaizinhos da Intel, nós estamos criando algo sempre diferente. Então, é preciso ter um tempo pra poder experimentar, senão fica impossível criar algo novo.

Artur: Isso tem a ver com aquela ideia de “ter o dom”, mas a realidade é que faz parte de um processo, né? Como você falou, de buscar caminhos, acertar e errar.

Lusa: Eu acho as duas coisas, Artur. Eu acho que tem que ter aquele “touch of god”, tem que ter algo que eu não sei explicar o que é, mas só isso não basta. Na minha vida de publicitário, eu cansei de ver gente super talentosa e que não deu em nada, porque faltava disciplina. 

E também cansei de ver gente muito disciplinada, que não tinha muito talento, mas que por causa da insistência e da disciplina acabou aprendendo o ofício. É mais fácil se você tem o “touch of god”, mas só isso não garante.

Tipo o Kobe Bryant, ele evidentemente tinha a capacidade motora superior, o cara tinha isso, pronto e acabou, nasceu assim. Além disso, ele acordava todos os dias às 4h30 da manhã, às 5h ele tava praticando arremesso, ia tomar café da manhã e depois ia treinar com o time. Ao longo dos anos, essas duas horas que ele treinava a mais que os outros todos os dias, fez dele um cara muito melhor preparado e confiante.

Para escrever títulos, eu sou de uma escola – que acho que até ainda é assim na propaganda -, quando se faz título de anúncio, a ideia é fazer cem títulos. Dessa grande quantidade, dava pra tirar três geniais. Então, eu cresci nessa musculatura da prática, de ficar arremessando que nem o Kobe Bryant.

A minha dinâmica para escrever roteiro é um pouco essa, agora um pouco menos porque as coisas estão muito judicializadas, muito em cima de contrato. Eu sou contratado para três roteiros e três revisões, ou seja, seis versões do que estou fazendo, então eu tenho seis possibilidades de ir melhorando cada vez mais o texto.

E eu utilizo isso, eu faço questão de melhorar o que estou fazendo a cada tratamento, cada revisão que eu tenho que fazer. Não considero isso contratual, considero como uma chance de ficar melhor, porque eu fui criado nisso. 

No final das contas, quando o filme sair no cinema, o meu nome vai estar lá do tamanho dessa parede e é o meu que tá na reta, então eu sou o principal interessado em fazer bem feito.

Eu tenho 15 longas e ainda bem que as pessoas não se recordam muito dos filmes ruins, elas só lembram dos bons, mas o fato é que eu tenho filmes ruins e esses filmes me assombram. Quem trabalha com arte, por incrível que pareça, também precisa se alimentar do próprio fracasso, sabe?

Não que seja um fracasso, mas aquilo que não deu certo acaba te assombrando e isso serve pra que você não faça mais daquele jeito. Às vezes te ensina mais do que os acertos. Graças à Oxóssi eu tenho mais coisas legais do que coisas ruins, mas tenho coisas ruins também, é inevitável.

Artur: Dos seus filmes, qual foi o que você mais curtiu fazer?

Lusa: Olha, eu acho que são duas coisas. Qual roteiro eu gostei mais de trabalhar eu não vou te contar nunca! hahaha 

Ornella: Acho que pode acabar magoando a galera, talvez? hahaha

Lusa: Não é bem isso, mas pra ser sincero, em cada um eu busco coisas que me deem prazer. Eu tento fazer com que todos sejam bons para trabalhar, mas o que posso dizer é que o processo que eu mais me diverti foi o do “E aí…Comeu?”. 

Esse foi o processo que eu mais me diverti disparado. Eu estava trabalhando com amigos, nós nos encontrávamos bastante pra fazer esse desenvolvimento e cada encontro era uma festa, são amigos que trago até hoje. Esse roteiro e “O Roubo da Taça”, foram dois que me deram muito prazer em fazer. 

Pela relevância, o “Medida Provisória” é um filme que me dá muito orgulho hoje, agora, nesse momento. É um filme que por contingências políticas, pela temática, por ser o último filme meu que estreou, enfim, é um filme que eu ainda me emociono muito quando escuto falar dele.

Mas todos os filmes têm algum segredo. Antes de fazer o “Medida Provisória”, eu fiz um outro filme com o Daniel Filho chamado “O Silêncio da Chuva”, que eu tive um imenso prazer de fazer. Trabalhei com o Daniel direto, ele sempre foi muito generoso comigo, não esqueço os almoços com ele. O elenco também foi maravilhoso

Esse filme me deu a oportunidade de adaptar o Garcia-Roza, que é um autor importante na literatura brasileira, especificamente na literatura policial. Então, todos os filmes possuem seus desafios e também seus prazeres.

Um outro filme que eu fiz, o “Amigas da Sorte”, é um filme que estreou na GloboPlay direto, foi um dos três filmes mais vistos do ano passado na plataforma. Porém, é uma comédia e esse é um gênero visto com bem menos generosidade, é como se fosse um gênero inferior. 

E esse foi um filme que a equipe viajou junta para o Uruguai pra poder fazer a pesquisa do universo a ser criado, todos os envolvidos ali são pessoas que gosto muito. Então, nesses processos longos e às vezes difíceis do cinema, precisamos procurar esses ganchos que fazem a gente gostar do projeto.

Ornella: Você falou coisas muito relevantes sobre a criação artística. Acho que todos que trabalham com arte já sentiram esse gostinho de não gostar de alguma criação, ou pelo menos achar que poderia ser melhor. No caso do cinema, estamos falando de algo que está “gravado”, está na tela, é diferente da dança e do teatro quando estão no palco. Em que momento você viu que não gostou? Na hora que a cena estava sendo gravada ou isso ocorre quando está tudo pronto e aí você viu que não era bem isso que queria? Ou sei lá, esse “não gostar” ocorreu anos depois, quando você reviu o filme?  

Lusa: Toda vez que um filme estreia e até ele sair de cartaz, sem exagero, nós já assistimos pelo menos umas oito vezes. Porque tem os compromissos, pré-estreias, entrevistas coletivas, ou até antes de estrear, quando recebemos os primeiros cortes no computador.

Tanto que faz uns 10 anos que eu não assisto o “Estômago”, o “E aí…Comeu?” nunca mais vi também. Nesse processo de assistir o filme várias vezes, dá pra notar um monte de defeitinhos. Com o tempo você aprende que não pode mais ver o filme, porque não tem benefício, já passou, bora pro próximo.

Mas quando trabalhamos com criação, a crise é constante. Hoje mesmo, estamos trabalhando no “Estômago 2”, já foi filmado a parte brasileira e estamos mexendo na parte italiana, que vai ser rodada em novembro ou dezembro, só que o roteiro do filme tem que estar pronto em setembro.

Esse intervalo é importante porque tem a pré produção, um pouco de tempo pra organizar, modificar coisas também, mudar a rota e enriquecer alguma cena. O filme é uma coisa orgânica, o filme só fica pronto quando os atores entram e dão suas cores. Os próprios atores trazem questões que nós não vimos quando está na letra fria, ou seja, somente no papel. 

Hoje, por exemplo, foi um dia que ficamos trabalhando das 14h30 às 18h30 e cara…a gente não chegou em lugar nenhum. Ficamos 4h conversando e foi uma bosta. Como somos todos roteiristas experientes, eu, Marcos e o Bernardo, a gente sabe que isso faz parte do processo e que amanhã vai ser um novo dia. Tem dias bons e tem dias ruins.

Na época que eu estava na propaganda, são incontáveis os dias que eu estava no carro voltando pra casa e pensando “put* merd*, é hoje que vão descobrir que eu sou uma fraude! É nesse trabalho que vão descobrir que eu cheguei até aqui na sorte ”. 

Não é bem uma insegurança, mas é que os percalços do caminho criativo para fazer algo que você tenha orgulho são: dois passos pra frente, um pro lado, dois pra trás. Com o tempo e a maturidade, aprendemos que isso não é só parte do processo, mas também é saudável ser assim. Eu pelo menos vejo assim.

Ornella: Realmente, ficar muito com a cabeça enfiada em uma mesma coisa não faz bem. Esse movimento de aproximar e afastar do que se escreve é importante para deixar a mente ter espaço para criação na escrita. 

Lusa: Sim, e o processo de desenvolvimento de um roteiro naturalmente permite isso. Por exemplo: Hoje eu entreguei um texto para um produtor, é um argumento, são 10 páginas de texto contando a história. Nós vamos ficar trabalhando nele até o final do mês, mas depois que for entregue no dia 31, vai demorar uns 20 dias para eu voltar a mexer nele.

Nesses 20 dias eu vou ver outros filmes, vou pensar em outras histórias, ou sei lá, não vou fazer nada, sabe? Esse distanciamento é bom, essas pausas são importantes para que a gente respire outras coisas.

Eu sempre vi muitos filmes, muitos mesmo. Eu sou meio da escola do Quentin Tarantino, que vê muito filme e teve muita referência, lógico que guardadas as devidas proporções porque o cara é um “f*cking freak”.

Como ele, também trabalhei em locadora, além disso eu sempre fui caseiro, então até na época que trabalhava em agência, eu alugava 5 filmes na sexta-feira pra devolver na terça-feira. Então, pra fazer um longa, pra fazer um roteiro, você também tem que beber das referências que vão pautar o desenvolvimento.

Eu estou bem no comecinho do processo de um filme sobre um roubo de um museu, e pra isso eu fui ver um monte de “Heist Movies” (filmes de assalto), tipo “Ocean’s Eleven”, “Bullit” que é um filme com o Steve McQueen…

Artur: Puts, eu adoro esse filme!

Lusa: Agora eu quero ver outro filme com o Steve McQueen que se chama “Crown, O Magnífico”. Enfim, a gente vai bebendo das referências de acordo com aquilo que estamos fazendo. O processo é sempre de descoberta, mas obriga a gente a olhar pras referências. A partir disso, acho que cada um acha seu jeito, a sua mecânica para fazer as coisas. 

Artur: O primeiro filme seu que assisti foi o “E aí…Comeu?” e os personagens são muito legais! Aí tem uma coisa que eu sempre quis saber, que é como funciona o processo para criação de personagem. Eu sei que cada um tem o seu, mas como é pra você? Você se inspira em pessoas que conhece, pessoas que viu em filmes ou é mais “fabricado”? Fabricado tipo “precisamos de um personagem com tal, tal, tal característica”.

Lusa: No caso do “E aí…Comeu?”, era uma peça do Marcelo, então já tinha os personagens, mas evidentemente que eu trouxe muita coisa. O Marcelo não viu o filme até a pré-estreia, aí quando eu fui abraçá-lo depois da sessão, ele me falou que adorou meu trabalho, de colocar elementos que não tinham antes, então, tem muito de mim ali também.

Mas para a criação de personagem, eu me baseio em duas coisas e elas têm o mesmo radical: é a vida. Personagens verdadeiros, personagens que você olha e fala “esse cara eu compro porque ele existe”. Então, isso vem um pouco de me inspirar em gente que eu conheço sim, mas vem também de técnica de roteiro mesmo.

Quando você vai fazer o perfil de um personagem, você precisa pensar no contexto de vida dele, nós chamamos isso de “backstory”. Então, de onde ele veio, qual a religião dele, se ele tem dinheiro ou não tem, se o pai dele batia nele, como ele é afetivamente, enfim, você vai compondo isso.

Outra coisa que pensamos é qual seria a fortaleza dele, o “super poder” do personagem, o que é aquilo que vai tirar ele da encrenca. E como ninguém é perfeito, você também pensa nas fraquezas, fragilidades e vulnerabilidades.

Se for uma tragédia, precisamos pensar qual é a falha trágica dele, qual é aquela questão do perfil dele que inevitavelmente vai levar a um final terrível. Você pensa nessas coisas, mas são coisas que a gente vê no dia a dia, sabe? Todas as pessoas que conhecemos tem vulnerabilidades e fortalezas.

Outra coisa que pensamos muito na criação de personagem, talvez seja o mais importante, é o arco dele na história. O que está motivando ele no começo da história para buscar um objetivo específico? E como é que vai ser essa caminhada até onde ele quer chegar. 

Aí existem alguns arcos de história que são clássicos, mas são baseados na vida também. Tais como o homem contra o sistema, o homem em busca de redenção, o cara perdido na vida que precisa se encontrar, então, é a vida. 

O importante é estar em um restaurante com caneta e papel, de ouvido atento na mesa do lado. A minha mulher fica brava quando faço isso hahaha, mas é inevitável, é delicioso ouvir a conversa dos outros.

Tem um outro jeito que funciona muito bem pro Almodóvar e pra Tati Bernardi, por exemplo, que é se colocar na história. Todos os filmes do Almodóvar tem um pouco da vida dele, um dos seus melhores filmes que é o “Dor e Glória”, é totalmente ele o personagem.

Você se coloca no roteiro, tem o lado bom e o lado ruim. O lado bom é você ter uma história que te diz muito, então você tem esse lugar de fala. O lado ruim é que você está expondo a sua vida para milhões de pessoas, precisa ter muita terapia.

Ornella: Falando em terapia, essas técnicas de construção de personagem demandam um conhecimento psicológico do ser humano, o que é muito bacana. Apesar dos seres humanos serem muito dúbios, o roteirista precisa pensar o que forma aquela pessoa o que ela é, pra não criar um personagem que toma atitudes que o descredibiliza da sua realidade. Nesse sentido, quais são os roteiristas e diretores que você admira? 

Lusa: Olha, de fora do Brasil são vários, mas vou citar só alguns aqui. Até porque cada filme às vezes a pessoa erra, no outro acerta, né? Enfim, eu gosto muito do trabalho dos Irmãos Coen, gosto do Quentin Tarantino evidentemente e também gosto de um roteirista chamado Aaron Sorkin, que foi o cara que escreveu “A Rede Social”.

O Aaron Sorkin tem a capacidade de contar muita história em pouco tempo. Às vezes ele erra, como todo mundo erra, mas eu gosto muito do trabalho dele. Gosto muito do P. T. Anderson, que fez “Magnólia”. Adoro esse filme, é um dos meus favoritos da vida! É um cara que não tem medo, fez também aquele “Sangue Negro”, adoro o trabalho dele.

No Brasil tem um monte também, alguns são meus amigos, então eu sou suspeito pra falar deles. Mas assim, se não houvesse Bráulio Mantovani, Marçal Aquino, Fernando Bonassi antes de mim, eu não existiria. Eles foram os caras que abriram o mato a facão.

Gosto muito do Luiz Bolognesi, que é um amigo meu e grande mestre. Tem um roteirista da Globo que eu também gosto muito que é o Marcos Bernstein. Gosto da Carolina Kotscho, gosto de um monte de gente!

Gosto também de um monte de roteiristas que estão na televisão e que eu acho extremamente talentosos. Como a Tita Leme, a Antonia Baudouin que tem 27 anos e é uma potência. Tem uma grande amiga, quase irmã minha que é a Ana Reber também, ela tá sempre aqui em casa, estamos fazendo uns dois longas juntos. Gosto muito da Patricia Corso, que é muito técnica, uma metralhadora de ideias. Gosto de um cara chamado Álvaro Mamute lá do Rio, ele é um talento incrível.

Então, nós temos bastante gente competente que está aí pra fazer acontecer, e tá tendo demanda. A única coisa que dificulta um pouco a nossa vida é que, graças aos últimos anos e às políticas culturais inexistentes, nós estamos sendo muito contratados pelos streamings.

Por um lado o streaming é muito saudável e traz valores de produção, por outro lado eles são clientes. Eles já sabem o que querem com clareza, eles tem os algoritmos que ditam as necessidades, então isso achata um pouco a criação. Mas a gente não pode se queixar, já que comparado com o que era nos anos 90 e primeira década dos anos 2000, tem bastante demanda. 

Essa demanda está fazendo surgir vários roteiristas talentosos, alguns muito novos, que vão se beneficiar dessa procura toda daqui alguns anos. Digo isso porque para produzir conteúdo você precisa ter conteúdo, isso leva tempo, tem que ler muito, são décadas lendo livros, vendo filmes, ouvindo música, viajando por aí.

Infelizmente custa caro adquirir conteúdo, um livro custa em torno de 70 reais e em uma viagem dá pra gastar 10 mil reais, sabe? Na verdade, essa nova geração vai conseguir mais destaque daqui uns 6, 7, 8 anos.

Faltou para o Brasil fomento nos últimos anos, para todas as áreas da economia brasileira, em qualquer camada. Faltou fomento e cuidado no meio ambiente, faltou responsabilidade e cuidado na saúde, faltou tudo.

E existe uma incorreção, as pessoas acham que o artista, sei lá, o cara do cinema, que é minha área, enfim, as pessoas acham que o artista tá mamando e não é assim. Em todos os lugares do mundo, fora os Estados Unidos e Índia, todo o cinema que se faz no mundo é incentivado.

Pega um filme japonês, aparece lá o símbolo do Ministério da Cultura do Japão. Pega um filme francês, aparece também. Pega um filme do Almodóvar, aparece lá Governo da Catalunha, governo disso, secretaria de não sei quê.

O fomento existe pra gente produzir e para gerar riqueza. Até a entrada do Bolsonaro no governo, a gente faturava 25 bilhões de reais, sustentava 400 mil famílias e gerava 1 bilhão de impostos. Com a asfixia da produção cultural brasileira, 400 mil famílias passaram dificuldade.

Então, não é uma política cultural, é uma política de governo. A gente faturava mais que a indústria de confecção no Brasil, que foi uma indústria que também sofreu, não estou comparando e nem querendo ser exclusivo no sofrimento.

Isso nos deixou muito na mão dos streamings e ainda bem que eles estão aí, porque há uma completa ausência na política cultural, seja na música, cinema, teatro, dança, museologia, enfim, em qualquer coisa. Isso atrapalhou um pouco a gente. 

Mas voltando a pergunta hahaha tem muitos roteiristas excelentes no Brasil!

Artur: Vou fazer agora uma pergunta dupla, bora lá. Quando você está escrevendo um roteiro, você já tem uma equipe em mente? Diretor e atores, por exemplo. A outra pergunta é sobre as mudanças do roteiro de acordo com o cliente. Quanto muda o roteiro no percurso, qual o limite do cliente de pedir modificações pra você ou não existe isso?

Lusa: Cara, o cinema é um esporte coletivo, né? Não existe esses pedidos dessa forma “eu estou te contratando para isso e você tem que fazer desse jeito porque estou te pagando”, isso não tem. 

Mas antes mesmo disso, na minha opinião, existe uma maturidade do roteirista para saber que filme está sendo feito. Já que falamos de locadora, seria qual prateleira da blockbuster ele vai estar. Isso facilita a vida de todo mundo, porque não perde tratamento, não perde versões do roteiro.

A cada passo que você dá, é um passo pro filme ficar legal, pra não ficar dando volta pra trás ou indo pro lado, você está caminhando na direção que todas as pessoas ali estão comprometidas.

Existem casos de eu ser contratado e ainda não ter o diretor, mas eu não gosto disso. Aconteceram algumas vezes, mas o certo é ter o diretor pra falar que filme ele quer fazer, qual é a ambição dele. A partir disso você tem a capacidade de entender a cinematografia dele, que tipo de personagem ele faz, como é que ele filma, qual tipo de história o seduz. É um caminho mais suave se tem esse entendimento.

Novamente, o cinema é um esporte coletivo. Partimos do pressuposto que as pessoas que estão no processo de desenvolvimento, todas elas têm coisas a contribuir, sabe? Então, se eu sou um diretor e eu contrato um diretor de fotografia que eu gosto, que é um cara bom, seria burrice da minha parte não ouvir o que ele tem a dizer.

Eu falo pros meus contratantes: “Cara, você tá me pagando e você tem dois Lusas. O Lusa que não dá opinião, que é desperdiçar dinheiro ou o Lusa que dá opinião, que eu acho que é aproveitar melhor o dinheiro que você está pagando”.

Mas eu prefiro ter essa cumplicidade do diretor, do produtor e ter atores que colaborem, que dão ideias. Eu não serei jamais o único cara que vai ter ideia em um filme. eu não posso ser assim. As ideias vem de qualquer lugar e às vezes vem de onde você menos espera.

Eu seria burro de não aproveitar uma ideia, o meu nome vai estar lá na ficha do filme, gigante lá no cinema. Se a ideia não é minha, as pessoas vão pensar que fui eu do mesmo jeito. 

Para além dessa questão do crédito, as pessoas têm ideias e é esperado trabalhar com pessoas que sejam interessantes, que possam contribuir. Se você tem alguém, sei lá, um ator que não vai te ajudar, então melhor chamar outro. Eu me sinto roubado – e isso até na propaganda – se eu dou um script pro ator e ele dá exatamente o que está escrito. Ele tem que dar o jeitão dele, colocar a cor dele ali, dar sugestões.

Vou dar um exemplo, que é de um filme chamado “Infiltrados”, do Scorsese. O Jack Nicholson tinha uma cena com o Leonardo DiCaprio, nesta cena o Leonardo DiCaprio tinha que sentir um pouco de medo do Nicholson. Eles fizeram o primeiro take, segundo, terceiro, aí pausa pro cafezinho. 

O Jack Nicholson virou pro Scorsese e falou “eu acho que ele não tá com medo de mim ainda”. Daí o Nicholson pegou um taco de beisebol e colocou em cima de uma mesa, mas não disse pra que iria usá-lo. Quando eles voltaram pra fazer a cena, o Leonardo DiCaprio ficou incomodado de ter aquele taco de beisebol ali, pensando “pra que ele vai usar isso?”. Já é uma cor diferente na cena, tira o ator da zona de conforto e ajuda o filme a ficar melhor.

Ornella: Esporte coletivo e humano, né? Muito bonito você falar da importância do coletivo. A minha pergunta vai de encontro com a que fiz pros outros entrevistados até agora, mas todos eram da música, então acho que a sua resposta pode dar luz a outros lugares. Nós sabemos que a pandemia afetou todos os setores da cultura, mas o audiovisual foi impactado de outra maneira, porque muitas produções começaram a ser por vídeo, tais como shows, teatro, dança, etc. Não houve fomento, mas ao mesmo tempo as pessoas consumiram muitas produções audiovisuais durante a pandemia. Mas isso pode ser só uma impressão, a realidade é outra coisa. Como realmente foram esses anos de pandemia pra você que é roteirista e pros seus colegas da área do cinema e audiovisual?

Lusa: Vou te responder de duas maneiras. Para o streaming foi um boom que deu, sabe? Eu estava trabalhando com o Netflix na época. Tudo aumentou a audiência, até na TV a cabo que estava caindo, até no Multishow, enfim, houve uma subida na audiência porque as pessoas estavam trancadas em casa. 

Então, houve um boom, mas ao mesmo tempo que esse boom estava acontecendo, os produtores e canais estavam preocupados em ter produtos na prateleira. Continuar tendo coisas para oferecer porque a demanda aumentou muito.

Nesse momento, chegaram players no mercado muito poderosos. Quando você pensa na Netflix, por exemplo, que é um canal maravilhoso, as meninas lá são ótimas para trabalhar, super respeitosas, preparadas, inteligentes e muito gentis, sempre me trataram muito bem.

Mas os outros que entraram, como a Amazon que entrou com mais força. A Amazon, olha…a Amazon é a Amazon hahaha. Os caras colocam pessoas no espaço, eles tem muito mais grana que a Netflix. Mas tem outros, como a Disney, e eles tem os parques, é dinheiro pra caramba também. 

Aí tem a Globoplay. Gente, a Globo é a maior empresa de entretenimento do Brasil dos últimos 60 anos. Eles tem um repertório, um material de 50 anos muito valioso e com muita afinidade afetiva com os brasileiros. Se eles forem passar “O Bem Amado” no Globoplay novamente ou “Saramandaia”, vai estourar. Eles têm arquivos valiosos.

Tem a AppleTv também, a Apple vende o celular mais famoso do mundo, eles também tem muito dinheiro. As únicas duas que o negócio principal é entretenimento são a HBO e a Netflix. 

Isso bagunçou o mercado em um momento que precisava ter muito conteúdo, então, o conteúdo de tela pequena, celular, notebook, TV, isso bombou. E foi o que compensou a falta de fomento da nossa indústria cinematográfica. 

Os cinemas fecharam, estão voltando agora, o que vendemos de ingresso neste primeiro semestre é uma coisa surreal, foi o mesmo que de 2021 inteiro. “Medida Provisória” até a última notícia que eu tive, fez 500 mil ingressos. É bastante, graças a Deus.

Por outro lado e aí já falando do nosso ofício, a gente teve que se reinventar muito, porque a dinâmica para fazer uma série antes da pandemia era assim: você sentava em uma mesa na sala de roteiro e você ia discutindo o que ia fazer com os outros roteiristas, você caminhava um pouco a cada dia e ia colocando as fichas de cena na parede.

A partir da pandemia e do Zoom, nós tivemos que aprender a trabalhar só pelo computador. Hoje em dia nenhum roteirista tem escritório, todos nós trabalhamos em casa e isso foi uma mudança de paradigma, porque o trabalho do roteirista já é um pouco solitário.

Quando você não precisa sair de casa pra porr* nenhuma, nem pra encontrar com outros roteiristas, você vai largando, né? Você não usa mais roupa direito, não está mais preocupado se está gordo ou magro, você perde um pouco as rédeas da civilização.

Então, eu acho que o que está acontecendo hoje é um equilíbrio entre as duas coisas. Não há dúvida que a sala de roteiro agora é online, mas por outro lado precisamos valorizar os encontros pessoais. Ir almoçar com o diretor, tomar um café com o produtor, enfim, as pessoas são de carne e osso. É bom que elas se encontrem, nós somos seres sociais.

Artur: Sim, concordo. Vou fazer uma pergunta meio padrão haha mas assim, os filmes coreanos estão em alta desde o “Parasita”. A impressão que eu tenho, como pessoa de fora da área, é que as pessoas estão dando um pouco mais de abertura para o cinema produzido por outros países, que não são Estados Unidos, Inglaterra e França. Você sente que tem essa abertura maior ou é algo momentâneo? 

Lusa: Eu acho que esse boom do cinema coreano não está acontecendo a partir do “Parasita”. O que acontece é que todos os filmes coreanos de maior projeção acabam sendo feitos remakes de língua inglesa. Uma série de histórias que nós gostamos, às vezes são histórias japonesas, chinesas, coreanas, vietnamitas. Essas histórias são refilmadas em inglês e quase sempre com qualidade inferior. 

No caso do cinema coreano, ele está um pouco mais aparente agora porque é uma política de estado deles. O “Parasita” ou aquela série “Round 6” não surgiram do nada, sabe? Assim como o Gangnam Style também não apareceu do nada. O Estado tem uma estratégia e investe nessa internacionalização da cultura coreana como atividade econômica.

Eles detectaram que existe um lugar dentro da cultura pop onde a Coreia poderia ser melhor vista e isso traz benefícios incríveis pro país. As pessoas vão visitar a Coreia, vão em restaurantes coreanos, os coreanos são bem aceitos quando viajam para Nova York de férias, por exemplo. Mas isso não começou de agora.

Os coreanos tem uma pegada estética pop/violenta, isso é presente no “Parasita” também, essa coisa visual que é quase um gore, isso eles vem desenvolvendo há muito tempo. Por exemplo, tem o filme “Old Boy”, sabe? E coreanos assim tem muitos. 

Os japoneses também, se você pegar os filmes de terror dos caras, são excelentes. O filme “The Ring” é um filme americano bom, mas o original japonês é muito melhor. Antes de tudo isso eles já tinham o Kurosawa, um dos cineastas mais importantes do mundo, que chegou até a refilmar Shakespeare. 

Mas respondendo sua pergunta, eu acho que hoje as coisas transitam com mais facilidade, nós temos acesso a mais coisas. Antigamente você precisava esperar o cinema estrear um filme e muitas vezes ele estreava com uma diferença de meses comparado ao mercado americano. O disco era assim também. Hoje basta apertar um dedo e você está no Spotify ou em outra plataforma. 

Hoje a cultura em geral transita com mais facilidade, as ideias também surgem de outros lugares. “O Cheiro do Papaia Verde” é um filme do Vietnã da década de 90 e é maravilhoso, super bonito. Tem um filme japonês da primeira década dos anos 2000 chamado “A Partida” que é lindo de morrer. 

Tem narrativas que vêm do Japão, da Coreia, da China, ou jeitos de fazer que vem da Escandinávia, enfim, são essas coisas que ajudam a gente a gostar mais de cinema. Eu, por exemplo, adoro o que a Escandinávia produz. São atores diferentes, cenários diferentes.

Aquela série “Borgen”, é uma série política e é muito interessante ver o que é relevante para eles versus o que é relevante pra gente. Nós estamos discutindo fome zero e eles estão discutindo se ainda vale a pena explorar petróleo. Aí que vemos as diferentes dinâmicas que existem no mundo e que esse mundo é maior do que o Zoom ou as outras coisas mais banais que consumimos.

Ornella: É realmente muito interessante isso. Eu lembro quando assisti “Mônica e o Desejo” do Bergman e, se não me engano, tem uma cena onde a Mônica engravida e ela tem uma conversa com a mãe que indica que ela faça um aborto, caso a Mônica não queira o filho. Eu fiquei chocada do quanto aquele diálogo era natural, ainda mais em um filme de 1953. Dava pra ver que era um assunto resolvido pra eles, isso me deixou bem espantada, não consigo imaginar isso acontecendo aqui, infelizmente. 

Lusa: Nossa, totalmente. Esse diálogo aqui não funciona nem hoje, imagina nos anos 50.

Ornella: Sim, foi bem impactante. Você falou também do incentivo coreano, isso esbarra na sua fala anterior sobre a falta de incentivo cultural aqui. Hoje em dia você encontra diversos lugares que dão aula de coreano, há uma busca por isso, diversas academias de dança também estão oferecendo aulas de coreografia de k-pop, por exemplo. É colocar culturas mais próximas umas das outras, acho isso importante e deveria rolar com mais países.

Lusa: Sim, concordo. Mas existem umas pessoas ignorantes, nem sei se ignorantes, acho que burras mesmo, mal intencionadas, atrasadas no mundo e que acham que artista vive de mamata e não é isso. 

Nós trabalhamos pra caramba e nós trabalhamos fazendo coisas relevantes, coisas que vão durar séculos, sabe? A cada filme que eu faço, eu tenho certeza que eu estou fazendo algo que fica pra história. Por isso também, eu gosto de todos os meus filmes, mas alguns têm vocações diferentes.

O “E aí…Comeu?” é um filme que eu amo de paixão, tem a vocação do entretenimento. O Artur assistiu o “E aí…Comeu?” e isso me deixa muito envaidecido de saber que ele há 10 anos atrás foi lá no cinema e pagou pra ver o filme e deve ter morrido de rir, porque era essa a intenção.

Artur: Sim e eu fui com meu irmão que estava torcendo o nariz por ser filme nacional, mas ele chorou de rir, é realmente muito bom.

Lusa: Fico feliz com isso, cara. Os dois últimos filmes que lançamos, são dois filmes que me dão muito orgulho, tanto “O Silêncio da Chuva” quanto o “Medida Provisória”. “O Silêncio da Chuva” por seus motivos, é um filme de gênero, um filme policial, que foi bem interessante de trabalhar, eu gostei muito de poder adaptar o Garcia Roza e também de trabalhar com o Daniel Filho, o elenco é muito bom também.

E o “Medida Provisória” porque é um filme realmente muito importante para a sociedade brasileira. Eu falo isso sem vaidade nenhuma, porque não fui só eu que fiz o filme, somos 4 roteiristas, 3 negros e eu branquelo lá no meio.

É um filme super importante, como o “Marighella” também foi, como “Que Horas Ela Volta?” também foi. Hoje eu tenho alguns filmes de Cinemateca que me deixam orgulhoso.

Ornella: Poxa, não tem que ter vergonha de ter orgulho do próprio trabalho, né? Existe uma coisa que permeia alguns artistas de meio que se colocam pra baixo, enfim, você até comentou sobre isso, quando falou de que em algum momento iriam descobrir que você era um impostor. São sentimentos que nos enganam muito, porque não tem problema em ter noção que o trabalho tem qualidade, não foi feito do nada, tem esforço e coerência no que faz.

Artur: Eu sou do time que o artista tem que ter orgulho do próprio trabalho!

Lusa: Pois é, tem que ter, cara. Se você fizer bem feito, vai ficar anos ali. Hoje nós falamos muito do “Estômago”, que é um filme que estreou em 2008, faz 14 anos e é um dos filmes mais assistidos da Netflix agora.

“Medida Provisória” desde que estreou, assim como o “Marighella”, foi avacalhado no IMDB, porque a nota é dada pelos usuários. Se você abre a parte que mostra como foram as notas individuais, tem 400 notas 10 e 200 notas 1. 

Eu adoro essas notas 1! hahaha É sinal de que incomodamos mesmo. Foram pessoas que se movimentaram para chegar no site, às vezes até fazer o cadastro, só pra dar nota 1 porque são de correntes políticas contrárias.

Eles imaginam que estamos, sei lá, evidentemente que existe um posicionamento político, mas é um posicionamento muito maior do que político, estamos falando de humanidade básica. Se até hoje, aqui no Brasil, independente da sua tendência política ou cor de pele, se você disser que não existe racismo no Brasil, você é mal intencionado. 

Se você diz que no Brasil não tem racismo, ou você não entende bost* nenhuma desse país e, portanto, nem deveria exercer cargo político, ou você está mal intencionado. 

Porque tem muito racismo e não adianta falar “você é branco, você não tem lugar de fala”. Tenho sim, eu sou o opressor e é preciso ter noção disso, é preciso abrir os olhos pros espaços que só tem pessoas brancas se divertindo e os negros estão servindo mesa.

Eu nunca entrei em uma loja e fui perseguido por segurança, o fato de não percebermos isso, mostra que colaboramos com o racismo, ou somos no mínimo coniventes. Entendo que cada um também trabalha com as ferramentas que tem disponível.

 Graças à Oxóssi, o “Medida Provisória” caiu na minha mão e eu pude, de alguma maneira, dar minha contribuição para esse universo e de um jeito que eu acho legal.

Artur: Uma coisa que me chamou a atenção quando assisti o “Medida Provisória” é que eles falam “Medida Provisória 1888”, que diz respeito ao ano da Lei Áurea. Inclusive, a Lei Áurea foi feita um ano antes da Lei que diminui a maioridade penal para 6 anos e que transformou “vagabundagem” em crime. Mas 1888 (18/88) também é um código nazista muito utilizado, tem relação com isso?

Lusa: Nós fomos pelo ano da Lei Áurea mesmo, do mesmo jeito que a personagem da Adriana Esteves chama Isabel. Mas o filme, de um jeito ou de outro, fala de fascismo sim, então, tá lá também. O interessante é que colocamos um monte de coisas que se confirmaram depois, mas nós escrevemos antes.

Por exemplo, tem uma passagem de uma entrevista coletiva, onde o personagem André, que é o Seu Jorge, pergunta algo do tipo “Quando vocês vão olhar nossos dentes?”. E ela responde “Essa pergunta é idiota e eu não vou responder”. 

Esse roteiro foi filmado no primeiro mês de governo Bolsonaro e o próprio presidente cansou de fazer isso nos anos seguintes ao responder “Essa pergunta é idiota e eu não vou responder”. Não foi ele que inspirou o filme, o fato é que ele é muito óbvio.

Inclusive foram pessoas desse governo que, tentando falar mal do nosso filme, acabaram fazendo propaganda pra nós, ficamos no “trending topics” do Twitter até. Mas houve sim uma “operação tartaruga” para atrasar a estreia do filme, como se fosse impossível impedir a estreia dele, né? É gente muito burra.

Artur: Pois é, e no filme é bem isso, no começo está ruim e depois fica pior haha. Enfim, pra finalizar, recomenda pros nossos leitores algum filme, série, música, peça de teatro, o que você acha que vale a pena o pessoal conhecer.

Lusa: Já tinha citado, mas acho que “Borgen” é uma série que vale a pena assistir. Tem outras, né? Tipo “Peaky Blinders”, acabei de ver recentemente e adorei, minha esposa é meio ruim de assistir algo que já tenha começado há algum tempo, mas consegui convencê-la de começar e nós gostamos da série.

De livro eu indico um do David Foster Wallace, que infelizmente já faleceu, mas o nome do livro é “Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo”, esse livro é um desbunde, aqueles que mudam a vida mesmo.

Tem um filme que eu sempre assisto quando passa, são dois dos meus favoritos, que é “Pulp Fiction” e “O Poderoso Chefão”. 

De música, o que eu ouvi muito na pandemia e que, de certa maneira, salvou minha vida, foi um disco do Miles Davis chamado “Birth of the Cool”. Principalmente esse Jazz que aconteceu ali entre 1957 e 1965, que é o Cool Jazz do Miles Davis, John Coltrane, Dave Brubeck, esses caras me ajudaram muito na pandemia.

Ornella: Muito bacana, Lusa! Agora nós vamos te deixar em paz, porque sabemos que você está cansadão hahaha obrigada pelo seu tempo e pela conversa, foi um prazer te conhecer.

Lusa: Imagina, gente! Foi um prazer papear com vocês.

Artur: Valeu, Lusa! Muito obrigada pela conversa!

Lusa: Valeu gente!

Mais um papo muito bom, dessa vez com nossos parceiros da área do cinema e audiovisual! E aí, tem alguém que você gostaria que nós entrevistássemos? Mande sua sugestão, dicas, o que achou, reclamações, elogios, só não trazemos o amor de volta em 7 dias!

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